Nossa forma de agir, talvez pelo modo como somos criados no Brasil, faz com que, muitas vezes, cheguemos com uma armadura para conversas com pessoas que têm posições diferentes das nossas. É como se precisássemos de uma blindagem para expor nossos pontos de vista. O buriti, para nós, é uma representação dessa realidade. Essa palmeira brasileira produz um fruto que tem uma casca dura, para se proteger, mas dentro tem muitas vitaminas, com funções tanto estéticas como nutritivas. A Burithi acredita que dentro de cada um, apesar de entrarmos nas conversas com uma armadura, há muitas qualidades a serem exploradas.
Junte pessoas “blindadas” em organizações de qualquer natureza e você terá conflitos.
É o que se vê, por exemplo, em empresas familiares. Pouca gente sabe, mas companhias desse tipo, segundo o Sebrae, representam aproximadamente 80% da nossa economia – uma das dez maiores do mundo. É um volume gigantesco de negócios, que absorvem 75% da força de trabalho do nosso país e respondem por 65% do nosso PIB. Desse universo de empresas, 70% ainda têm sua gestão nas mãos do fundador. Apenas 5% delas já estão na terceira geração. Isso significa que, para a esmagadora maioria das empresas familiares brasileiras, há uma longa jornada pela frente na rota para a perpetuação. E é para essa jornada que nos propomos a olhar.
Em uma família empresária, existe um limite muito tênue entre parentes e negócios. Por isso, inevitavelmente, há alegrias e dissabores nessa jornada. Tem sido assim com Paulo, um imigrante italiano que chegou ao Brasil na década de 1950. Quando desembarcou em São Paulo, ele começou a trabalhar com um tio, que já morava aqui, no mercado imobiliário. Fazia intermediação de negócios com imóveis residenciais. O tio acabou falecendo e Paulo ficou com a empresa, que cresceu muito sob sua gestão e passou a atuar também com imóveis comerciais.
Paulo casou-se com Fátima. Juntos, eles fundaram a Habitare Ltda. Conforme o tempo foi passando, o negócio e a família foram crescendo. Hoje Paulo tem quatro filhos e 16 netos. A filha mais nova, Mia, trabalha na companhia. Ela estudou, se formou, fez estágio em várias outras organizações e hoje ocupa o posto de CFO da Habitare. Recebe um salário de mercado mais benefícios. Detalhe: Mia só é filha de Paulo. Ou seja, é irmã dos demais apenas por parte de pai. Os outros filhos são membros do conselho de família e quotistas.
Paulo e Fátima fundaram essa empresa com o objetivo de criar um patrimônio que pudessem deixar para seus filhos. Construíram a companhia como algo que pudesse lhes trazer segurança no futuro. Com isso em mente, todo ano Paulo presenteava os filhos com um percentual de participação na Habitare e promovia uma reunião, na qual se discutiam os números e a saúde do negócio.
No ano passado, Paulo se surpreendeu. Pela primeira vez nessa reunião, dois dos filhos resolveram se manifestar. Um deles é o filho mais velho, Vitor, que disse que gostaria de assumir o cargo de vice-presidente da empresa. Deixou claro que gostaria de ocupar o lugar do pai, àquela altura com 85 anos. Paulo ficou surpreso, porque Vitor não havia estudado muito, abandonara a faculdade e nunca havia se interessado pela companhia. Ao mesmo tempo, Ana, a segunda filha, manifestou o desejo de equalizar o que chamou de “diferenças”. Ela gostaria que os dividendos que recebia fossem equiparados aos valores pagos a Mia, a irmã caçula e executiva.
Paulo foi pego de surpresa por esses questionamentos e se deu conta de que as relações estavam estremecidas. Havia ruídos na comunicação entre os filhos, e isso lhe desagradava.
Este não é um caso real. É uma compilação de experiências que nós tivemos na Burithi.
Quem está inserido no contexto das famílias empresárias deve ter passado por alguma situação semelhante a esta. Ela nos permite mostrar como a Burithi trata desses assuntos.
O primeiro passo a ser dado quando se formula um plano para resolver conflitos é explicar que certeza não é verdade. Paulo tinha muitas certezas. Sua convicção lhe dizia que o filho agora manifestava interesse pela empresa porque queria se sentir importante: “Ele está cercado de amigos que tiveram sucesso na vida e estão em posições relevantes em suas empresas. Por isso é que Vitor quer um cargo.”
Olhava também para Ana e pensava: “Ela está sendo gananciosa e mimada”. Numa mediação para tratar de conflitos desse tipo, um empresário como ele tende a chegar com muitas certezas.
É nesse momento que a gente perguntaria: “De onde vêm essas certezas?”. Por exemplo, a de que Vitor gostaria de ser vice-presidente da empresa porque precisa de um certo status. Já dizia o filósofo René Descartes que a dúvida é o primeiro passo para o conhecimento.
Esse é o momento em que colocamos todo mundo à mesa. Nosso trabalho não é apenas dialogar com Paulo para entender qual é a visão dele e questioná-lo. É colocar todo mundo para conversar e utilizar as ferramentas de que dispomos para investigar o que há por trás daquelas certezas. Paulo, por exemplo, pode descobrir que, na verdade, Vitor estava solicitando aquele cargo não porque era um desejo seu, mas pela pressão que sentia, como primogênito, de assumir o comando da empresa. Poderia também vislumbrar que a exigência de Ana era na verdade um reflexo do ciúmes que sentira quando descobriu que o pai tinha uma outra herdeira. Nesse processo, o mediador não tem de investigar as motivações apenas daqueles que questionaram o status quo, mas também a de todos os demais.
Todos aqueles que sofrerão algum impacto pela decisão a ser tomada precisam sentar-se à mesa para conversar. Parte do nosso trabalho é chamar todas essas pessoas e questionar: “Qual é a sua expectativa em relação à empresa?; ao futuro?, à remuneração do seu irmão?”
Isso pode ser feito de várias formas. Uma delas é sentar-se com todos ao mesmo tempo e abrir o diálogo. Outra é ouvir os envolvidos em momentos separados, individualmente. O importante é que seja feito logo aos primeiros sinais de que algo está fora do lugar. Se você deixa o conflito escalar, a ponto de gerar um grande impasse, vai ter muito mais dificuldade para seguir e prosperar com seu negócio. Se, ao contrário, faz um trabalho preventivo, se essas conversas já estão acontecendo, se o alinhamento já está feito, sua empresa não vai ser tão impactada pelas questões familiares.
Estamos falando de famílias. Logo, os laços são muito fortes. As gerações seguintes carregam um peso, que gera dúvidas: “Eu preciso levar essa empresa adiante?”; “Eu quero levar essa empresa adiante?”. É uma herança que chega e provoca questionamentos: “Será que é isso que quero?”; “É esse caminho que quero percorrer?”. E qual é a expectativa de uma geração em relação à outra?
A conversa realmente é muito difícil e para que a verdade aflore é preciso criar um ambiente de confiança, propício para as pessoas se manifestarem. Nele, conseguimos esclarecer as motivações por trás das falas: “Quando você diz que quer uma posição dentro da empresa, o que você entende por ser vice-presidente?”
Será que Vitor quer essa vida? Será que entende essa responsabilidade? São muitas as perguntas, e se não criamos um ambiente seguro, no qual as pessoas possam falar o que pensam, mostrar sua vulnerabilidade e sentir-se acolhidas, respostas autênticas não surgirão.
Esse é um momento no qual as emoções se exacerbam. Às vezes, as pessoas não sabem se expressar, então precisamos dar a elas a oportunidade de esclarecer o que querem dizer com o que falam. Um exemplo emblemático de que se tem conhecimento no mercado foi a disputa do empresário Abílio Diniz com seus parceiros comerciais. Quando ele estava numa posição rígida de defesa de seu ponto de vista, a negociação não saía do lugar. Até que ele contratou um negociador, William Ury, que lhe fez uma série de perguntas e o colocou em situações que lhe permitiram fazer uma reflexão e entender que muito da sua posição devia-se, na verdade, à incapacidade de conhecer os próprios interesses. Quando Abílio conseguiu ver que o que mais queria era liberdade nos negócios, a negociação começou a fluir. O próprio Ury diz que parece milagre, mas não é. É dessa abertura, dessa investigação de si e do outro que saem possibilidades.
Chega-se, então, ao momento da construção de consenso – conceito que vai além da mera acomodação de ideias conflitantes. Nesse processo, todas as partes sentadas à mesa contribuem com seus anseios e suas ideias. Com esses ingredientes, algo será construído conjuntamente. Não, se estivesse sozinho, você não teria feito dessa forma. A ideia é que, uma vez atingido um consenso, você possa dizer: “Eu consigo conviver bem com isso. Precisei ceder em alguns momentos, porque entendi o que era realmente importante para mim, o que era realmente importante para o outro, mas com essa decisão eu consigo caminhar”.